Queria tocar na cabeça de um leopardo louco, no luxo
mandibular. Sentir os dedos tornarem-se
de granito. Sentir a deslumbrante
ressaca de pêlo
baixo arrebatar-me furiosamente os cinco dedos.
Como cinco balas de granito.
Uma estrela voltaica.
E tragá-la. E de súbito toda aquela púrpura nocturna
entrar por mim dentro, da mão à cara.
Ou uma ferida que me apanhasse de perna a perna.
Entrar em mim
a fábula da demência e da animal
elegância. Sei que o sangue me pontua, e estremeço
de poro em poro
com tanto ouro suado que me envenena.
Sei que toco.
Que há uma combustão nas partes sexuais
da minha morte. E se olho esse espelho exalado
de mim mesmo, vejo
pérolas, a anestesia das pérolas. Mas
o fósforo precipita-se onde
arrefece a carne, e se torna ligeira. E uma dor
instrumental, a minha própria música
descoberta, enreda-me como o som enreda
os tubos de um órgão.
E então nenhuma razão me escurece além do crime,
da metáfora directa
de um leopardo aluado como uma jóia. E ele levanta
a constelação craniana. A boca avança, límpida
chaga
até ao meu rosto. E neste espelho das coisas de repente
unidas todas, beija-me por mim dentro até
ao coração.
No meio.
Onde se morre do silêncio central
da terra.
Herberto Helder
you're lost little girl*
Estamos perdidos e ainda não o sabemos.
Aprender com os seres humanos demora
mais tempo. As casas estão identificadas,
mas as pessoas não. Como sabes que é por aí?
Vítor Nogueira
* The Doors
Aprender com os seres humanos demora
mais tempo. As casas estão identificadas,
mas as pessoas não. Como sabes que é por aí?
Vítor Nogueira
* The Doors
SOMBRAS
Iluminar o mundo - com palavras,
velas, algum vinho.
Dito assim, quase parece simples.
Mas chovia muito e resguardou-se
cada um na sua tão pequena chama
ou numa cómoda e fria indiferença.
Talvez fosse de esperar. As velas,
porém, continuaram a arder.
Enquanto cinco rostos se reflectiam na parede
e a poesia era, de novo, a única luz.
Manuel de Freitas
velas, algum vinho.
Dito assim, quase parece simples.
Mas chovia muito e resguardou-se
cada um na sua tão pequena chama
ou numa cómoda e fria indiferença.
Talvez fosse de esperar. As velas,
porém, continuaram a arder.
Enquanto cinco rostos se reflectiam na parede
e a poesia era, de novo, a única luz.
Manuel de Freitas
eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti
SING ANOTHER SONG, BOYS*
Não é a notícia da morte,
nem a própria morte;
é não saber o que fazer
com a vida.
Entre as gotas de chuva
e as derrocadas da alma,
onde enfrentar o silêncio?
Não é não haver
água quente e a fria
estar por um fio,
é o duche matinal
ser como banho de lama,
como pancada no estômago.
Poderia cantar-se
outra canção,
mas para quem
e para quê
se quem ouve
tem outros afazeres, outros
cuidados para atender?
Nem eu, que tenho
sido um modelo de virtude,
sinto o desejo
ou o dever de censurá-los.
José Alberto Oliveira, DE PASSAGEM
* Leonard Cohen
nem a própria morte;
é não saber o que fazer
com a vida.
Entre as gotas de chuva
e as derrocadas da alma,
onde enfrentar o silêncio?
Não é não haver
água quente e a fria
estar por um fio,
é o duche matinal
ser como banho de lama,
como pancada no estômago.
Poderia cantar-se
outra canção,
mas para quem
e para quê
se quem ouve
tem outros afazeres, outros
cuidados para atender?
Nem eu, que tenho
sido um modelo de virtude,
sinto o desejo
ou o dever de censurá-los.
José Alberto Oliveira, DE PASSAGEM
* Leonard Cohen
erros individuais
Quem não arrisca não erra, não se expõe
a que o vento lhe desmanche o penteado,
a cosmética das máximas mais firmes.
Este jovem, por exemplo, não arrisca,
veste de luto por si mesmo, num ensaio
de extinção. Ri-se dos passos que deixou
por tropeçar. Cada minuto em silêncio,
pensa ele, vale pelo menos seis dobrões
de serenidade. Sepultado até aos ossos
em palavras aprendidas, faz o encómio
da vida retirada, dos dentes de leite.
Escolheu o partido da solidão porque
a vida o assusta. Assusta-o a turbulência
do mal, a guinada sanguinária em que se
jogam os sucessos, os triunfos - a vida,
julga ele, é refractária à piedade. Fala-se,
na vida, muito alto, cometem-se rasteiras
e negaças por vontade. É de fugir
ou devorar, comenta ele aos seus botões.
E nada disso o apaixona. Não foi feito
para guerras nem angústias, desconfia
do amor e da fraqueza que nos une
como eles de corrente ameaçada.
Antes quer a sepultura dos libertos,
declarar-se à fantasia dos caídos
sem combate. E de tanto recuar,
não parece outro o seu destino.
José Miguel Silva
a que o vento lhe desmanche o penteado,
a cosmética das máximas mais firmes.
Este jovem, por exemplo, não arrisca,
veste de luto por si mesmo, num ensaio
de extinção. Ri-se dos passos que deixou
por tropeçar. Cada minuto em silêncio,
pensa ele, vale pelo menos seis dobrões
de serenidade. Sepultado até aos ossos
em palavras aprendidas, faz o encómio
da vida retirada, dos dentes de leite.
Escolheu o partido da solidão porque
a vida o assusta. Assusta-o a turbulência
do mal, a guinada sanguinária em que se
jogam os sucessos, os triunfos - a vida,
julga ele, é refractária à piedade. Fala-se,
na vida, muito alto, cometem-se rasteiras
e negaças por vontade. É de fugir
ou devorar, comenta ele aos seus botões.
E nada disso o apaixona. Não foi feito
para guerras nem angústias, desconfia
do amor e da fraqueza que nos une
como eles de corrente ameaçada.
Antes quer a sepultura dos libertos,
declarar-se à fantasia dos caídos
sem combate. E de tanto recuar,
não parece outro o seu destino.
José Miguel Silva
RUA DO BONJARDIM
Ao entrar no quiosque,
nesta tarde de névoa, para
comprar um jornal qualquer, uma criança
pediu algo que não entendi. Seria
uma moeda para um chiclete? Perguntei
ao homem sentado atrás das
revistas do coração e dos diários
da bola de quem seria a criança, como
se pudesse ser de alguém um ser
tão súbito, nascido da genealogia
indecifrável da tarde.
Inês Lourenço
nesta tarde de névoa, para
comprar um jornal qualquer, uma criança
pediu algo que não entendi. Seria
uma moeda para um chiclete? Perguntei
ao homem sentado atrás das
revistas do coração e dos diários
da bola de quem seria a criança, como
se pudesse ser de alguém um ser
tão súbito, nascido da genealogia
indecifrável da tarde.
Inês Lourenço
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