de tanto bater o meu coração parou
O Diabo vivia nos aposentos da minha irmã Valéria - em cima, exactamente onde terminava a escada -, um aposento vermelho, de cetim de seda de damasco com uma eterna e oblíqua coluna de sol, onde de modo incessante e quase imperceptível girava o pó.
(...)
O Diabo estava sentado sobre a cama de Valéria, nu, com uma pele cinzenta, como um dogue, com uns olhos alvacento-azulados como os de um dogue ou um barão do Báltico, com os braços estendidos ao longo dos joelhos como uma mulher de Riazan numa fotografia ou um faraó no Louvre, na mesma postura de inevitável paciência e indiferença. O Diabo estava sentado tão aprazivelmente como se o estivessem a fotografar. Não possuía pelagem, tinha o contrário da pelagem: um absoluto polimento e suavidade, como a superfície do aço. Agora dou-me conta de que o corpo do meu Diabo era idealmente atlético: como o de uma leoa, e pela textura como o de um dogue. Quando vinte anos mais tarde, durante a Revolução, deixaram um dogue ao meu cuidado, imediatamente reconheci o meu Myshaty.
(...)
Ao caminhar fazia ruído com as unhas contra o chão. Contudo, nunca caminhou na minha presença. Mas o seu principal sinal distintivo não eram as garras, nem a cauda: não os seus atributos, mas os olhos: incolores, indiferentes, inexoráveis. Antes que se tivesse passado qualquer coisa, reconhecia-o pelos olhos, e a esses olhos tê-los-ia reconhecido mesmo que nada se tivesse passado. - Não havia acção. Ele permanecia sentado, eu de pé. E eu amava-o.
Marina Tsvetaeva, O Diabo
Devido ao Verde e ao facto de «baralhar as cartas», e em parte também à serva da mamã, Masha Krasnova, a quem tudo caía das mãos: as bandejas, a baixela, as jarras, e até peixes inteiros banhados em salsa!, que era incapaz de suster o que quer que fosse nas suas mãos excepto o baralho, eu, com sete anos de idade, comecei a gostar das cartas até à paixão.
Não do jogo - das próprias cartas: a todas essas figuras sem pernas e com duas cabeças, sem pernas e com apenas um braço, mas com a cabeça ao contrário, e com o braço ao contrário, ao contrário de si próprias, voltadas contra si mesmas e desconhecidas para si mesmas, dessa altas personalidades sem lugar de residência, mas com todo um séquito de três e quatro de um mesmo naipe.
Porquê usá-las para jogar ou, como Asia, jogar com elas, quando elas próprias jogavam, elas próprias eram o jogo: delas consigo próprias, e delas em si próprias. Era toda uma tribo viva, não humana, uma tribo de torsos, terrivelmente autoritária e não muito afável, sem filhos e sem avós, que não vivia em nenhum outro lado que não fosse a mesa ou atrás do escudo da palma de uma mão, mas em troca, então, com quanta força vivia! Que numa dúzia há doze ovos, isso ensinaram-me os anos, mas que em cada naipe haja treze cartas e que treze seja a dúzia do Diabo, disso não me fariam duvidar nem mesmo mergulhada no sono mais profundo.
(...)
(das damas, em geral, não gostava, todas tinham uns olhos frios e cruéis, com os quais me julgavam. como as damas que eu conhecia julgavam a minha mãe), mais que a todos os reis e a todos os valetes eu amava o ás de espadas!
(...)
Para dizer tudo: o jogo do Schwarze Peter era o mesmo que ter um encontro com alguém a quem amamos secreta e apaixonadamente, no meio de muita gente: quanto mais frio - mais ardente, quanto mais distante - mais próximo, quanto mais alheio - mais mais meu, quanto mais insuportável - mais delicioso.
(...)
Um jogo que não queria tomar, mas dar. Neste jogo, pela sua incorporidade e o seu horror, havia na realidade algo de infernal, de averno. Mãos que fugiam do inimigo. Assim, no Inferno, rindo e tremendo, uns e outros passam entre si um carvão incandescente.
O sentido deste jogo é profundo. Todas as cartas estão aos pares, só ele está só, solitário, pois o seu par foi eliminado antes do jogo começar. Cada uma das cartas deve encontrar o seu par e ir-se com ele, abandonar simplesmente a cena, como uma mulher formosa ou uma aventureira quando se casa abandona a mesa de todas as possíveis variantes, de todas as possibilidades, dos destinos individuais e, talvez, históricos para entrar nessa silenciosa, desnecessária e inofensiva pilha dos pares de cartas jogadas que já a ninguém interessam. Oferecendo-lhes toda a mesa, confrontando-o com a sua unicidade.
Marina Tsvetaeva, O Diabo
«Uma menina ocultou um pecado durante a confissão» e etc., estavam diante dos meus olhos e dos meus ouvidos. No fundo eu, é claro, não acreditava numa morte assim porque as pessoas morrem por causa dos diabetes, da apendicite, e também, uma vez, em Tarusa, um camponês morreu por causa dum raio, e por causa do trigo sarraceno - grão! ainda que seja um que em vez de ir para um lado da garganta foi pelo outro, e por pisar uma víbora... por isso sim morrem, e não...
(...)
Senti solidão com o meu segredo. A mesma solidão com o mesmo segredo de sempre. A mesma solidão que durante as longas e intermináveis missas no gelado templo de Cristo Salvador, quando eu depois de ter lançado a cabeça para trás para olhar na cúpula o terrível Deus, clara e duplamente me sentia e via-me a mim própria separada do solo brilhante, voando, remando como nadam os cães - por cima das cabeças dos devotos e inclusive com as pernas, com as mãos roçando-os e mais longe, e mais alto-agora a direito! - como nadam os peixes!, e agora com uma cauda de flores rosadas, de bailarina revolteio sob a própria cúpula.
Marina Tsvetaeva, O Diabo
Marina Tsvetaeva, O Diabo
Da estação íamos num break, um objecto sem futuro nem passado: na sucessão dos acontecimentos, diante dos pinheiros negros que, com os seus ramos húmidos, suavemente pungentes, nos roçavam a cara como um hissope. Um edifício com as paredes inclinadas, oferecido como que na palma da mão pela planície lamacenta. Para a casa entra-se, através de um jardim com relva, por aquilo que tinha sido um jardim com relva e já não o era. Dentro - silêncio. Antiguidade. Sinto que os aposentos aqui vivem sós, continuam, sem reparar que metade da família já não está. Sem reparar sequer na metade que ficou.
(...)
(...)
Jamais saberemos até que ponto os aposentos das velhas casas diante dos quais passamos sem reparar neles, não reparam em nós, como ondas de um velho mar que nos evitam no seu movimento para a frente. As ondas do mar e da estirpe, que só em poucas ocasiões, por um capricho imprevisível, cem anos após devolvem o nosso anel à margem do rio ou o nosso rosto a um bisneto.
Marina Tsvetaeva, O Diabo
O terceiro e, provavelmente, o mais longo é aquele por baixo do qual se está sentado: o piano visto a partir de baixo, todo um mundo subaquático e subpianístico. Subaquático não apenas devido à música que fluía sobre a cabeça: por trás do nosso piano, entre ele e as janelas, tapadas pela sua massa negra, havia flores, palmeiras e filodendros que ele afastava e reflectia como um lago negro e que transformava o embutido que estava sob o piano num autêntico fundo aquático, com luz verde sobre os dedos e os rostos, e verdadeiras raízes que se podiam tocar com as mãos, e onde como enormes monstros se moviam silenciosamente os pés de minha mãe e os pedais.
Uma pergunta sensata: por que é que as flores estavam por detrás do piano? Para que fosse mais incómodo regá-las? (Com o carácter de minha mãe seria bem possível!) Mas desta combinação: água do piano e água de regar, mãos da minha mãe que tocavam e mãos que regavam, que vertiam alternada mente água ou música, o piano para mim ficou para sempre identificado com a água, com a água e a vegetação: com o ruí do das folhas e da água.
Isto, no que diz respeito às mãos de minha mãe, agora — os pés. Os pés da minha mãe eram seres que viviam independentes, fora de qualquer ligação com o extremo da sua larga saia negra.
(...)
Pobre mamã, como sofria por minha culpa e como nunca chegou a dar-se conta de que toda a minha «não musicalidade» era apenas uma música diferente!
O quarto piano é aquele em cima do qual estás: olha-lo e, olhando-o, entras nele, o mesmo que, com o decurso dos anos, ao contrário da entrada num rio e de toda a lei da profundidade, primeiro é mais alto que tu, depois chega-te à garganta (e é como se te cortasse a cabeça com o seu fio negro mais frio que uma faca!) depois ao peito, e depois, finalmente, a cintura. Olha-lo e, olhando-o, olhas-te a ti próprio fazendo coincidir, pouco a pouco, primeiro a ponta do nariz, depois a boca, depois a testa com a sua negra e dura frieza. (Por que será tão profundo e tão duro? Tão água e tão gelo? Tão sim e tão não?)
Mas, além da tentativa de penetrar no piano com o rosto, havia também uma simples travessura infantil: embaciá-lo, como ao vidro da janela, dar-se tempo de imprimir o nariz e a boca sobre o prateado oval mate da respiração que se apressa a desaparecer: o nariz fica como um pequeno focinho, e a boca absolutamente inchada, como se uma abelha a tivesse picado por todos os lados!, cheia de profundas estrias longitudinais, como uma flor, e duas vezes mais curta que na realidade, e duas vezes mais larga, desaparece imediatamente, fundindo-se com a negrura do piano, como se o piano tivesse devorado a minha boca.
E em certas ocasiões eu, por falta de tempo, tendo lançado um rápido olhar a todas as saídas da sala: até ao vestíbulo - um, para a sala de jantar - dois, para o salão - três, para o mezanino - quatro, por todas ao mesmo tempo, podia entrar a minha mãe, limitava-me a beijar o piano para sentir o seu frio sobre os lábios.
Não, não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio. E assim, do mais escuro fundo, vem até mim a cara redonda e perscrutadora de uma menina de cinco anos, sem sorriso algum, rosada ainda através da negrura, como um negro que mergulhou na aurora, ou uma rosa num tanque de tinta. O piano foi o meu primeiro espelho, e a primeira tomada de consciência do meu próprio rosto foi através da negrura, com a sua tradução para a negrura, como para uma língua obscura, mas compreensível.
Marina Tsvetaeva, O Diabo
Marina Tsvetaeva, O Diabo
En las noches claras,
resuelvo el problema de la soledad del ser.
Invito a la luna y con mi sombra somos tres.
Gloria Fuentes
en mi cara
En mi cara redondita
tengo ojos y nariz,
y también una boquita
para hablar y para reír.
Con mis ojos veo todo,
con la nariz hago achís,
con mi boca como como
palomitas de maíz
con la nariz hago achís,
con mi boca como como
palomitas de maíz
Gloria Fuentes
el viaje definitivo
Y yo me iré. Y se quedarán los pájaros
cantando.
Y se quedará mi huerto con su verde árbol,
y con su pozo blanco.
Todas las tardes el cielo será azul y plácido,
y tocarán, como esta tarde están tocando,
las campanas del campanario.
Se morirán aquellos que me amaron
y el pueblo se hará nuevo cada año;
y lejos del bullicio distinto, sordo, raro
del domingo cerrado,
del coche de las cinco, de las siestas del baño,
en el rincón secreto de mi huerto florido y encalado,
mi espíritu de hoy errará, nostálgico…
Y yo me iré, y seré otro, sin hogar, sin árbol
verde, sin pozo blanco,
sin cielo azul y plácido…
Y se quedarán los pájaros cantando.
Juan Ramón Jiménez
when I was a little girl
When I was a girl, my life was music that was always getting louder. Everything moved me. A dog following a stranger. That made me feel so much. A calendar that showed the wrong month. I could have cried over it. I did. Where the smoke from a chimney ended. How an overturned bottle rested at the edge of a table.
I spent my life learning to feel less.
Every day I felt less.
Is that growing old? Or is it something worse?
Jonathan Safran Foer
I spent my life learning to feel less.
Every day I felt less.
Is that growing old? Or is it something worse?
Jonathan Safran Foer
de nada adianta imaginar
Provavelmente noutro tempo, noutras circunstâncias
chegaríamos a iguais resultados
chegaríamos a iguais resultados
pelo que de nada adianta imaginar um almagesto
ou tabelas de paralaxe para isto
a que convencionalmente chamamos amor,
nem calcular o ângulo
entre nós e o centro da terra,
de nada nos aproveitara, tu e eu
centros escorraçados de irregular gravitação.
Porém, isso não me impediu de ver plêiades
cada vez que surgias (só
não te dizia nada) plêiades iluminando
meu Hades
com suas cabrinhas coruscantes
pascendo
o vale da sombra da morte.
E a questão hoje é: who’s gonna drive you home tonight?
quando o melancólico transístor
destila também outras perguntas, mas nenhuma
tão dura quanto essa,
por exemplo: porque é que a água tem mais tendência
a subir em tubos estreitos
ao contrário do mercúrio?
Isto é view-master e são coisas que faço
na tua ausência.
Daniel Jonas
esgotados os recursos
Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.
Amalia Bautista, Trípticos Espanhóis vol. III, trad. joaquim manuel magalhães
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.
Amalia Bautista, Trípticos Espanhóis vol. III, trad. joaquim manuel magalhães
inventory
Four be the things I am wiser to know:
Idleness, sorrow, a friend, and a foe.
Idleness, sorrow, a friend, and a foe.
Four be the things I’d been better without:
Love, curiosity, freckles, and doubt.
Three be the things I shall never attain:
Envy, content, and sufficient champagne.
Three be the things I shall have till I die:
Laughter and hope and a sock in the eye.
Dorothy Parker
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